Desde muito, tinham-me por um menino prodígio, um futuro brilhante sonhavam pra mim. Acho que de certa forma, aceitei este papel sem muito relutar. Bem, se não aceitei, pelo menos nunca me opus veementemente a ele, talvez pelo fato de ele saciar um pouco minha vaidade subjacente. Com o passar do tempo, todavia ,todos foram se dando conta de que nunca passaria disto, do que verdadeiramente sempre fui ao longo de todos esses anos, ou seja, apenas uma grande promessa, nada mais.
Certamente, estou seguro de que não sou do tipo de pessoa em que apostaram, a qual se diga que haja vencido na vida, como todos nós estamos acostumados a ouvir, de ar afetado e vitorioso com seu carro na garagem.
Sempre estive certo que fosse coisa muito mais útil fazer o que me apraz, mesmo que isto significasse fazer algo que não me desse quase nenhuma recompensa financeira ou, porque não? Não fazer nada.Recorro ao direito inato que todo homem possui de não fazer rigorosamente nada, o que, è preciso que se esclareça, em absoluto significa não ter nada pra fazer,mas sim, ter a dádiva que tão comumente nos é rechaçada do dolce far niente.
A despeito disto,o que me parece verdadeiramente exasperante é perceber que, de sua parte, as pessoas, em sua grande maioria,moldam seus sonhos mais primordiais,calcados em valores tacanhos, os quais nos foram empurrados goela abaixo desde criança.Daqui, por conseguinte,surge o : crescer, casar-se,ter filhos, trabalhar e ao final, os louros da glória: vencer na vida.
O que isto significa? Não lhes pergunte.Basta seguir a formulazinha usual, o que obviamente, inclui o edificante trabalho,mesmo que seja para garantir a paga miserável e mesquinha de todo mês.
Se não bastasse isto, o que a mim me parece tanto pior,cobram de você também a mesma vidazinha insípida. Esteja seguro.
Trabalhe,case-se,seja autômato.
Sito-me como alguém que ficou olhando o trem da vida passar e esqueceu-se de embarcar no vagão dos homens de bem, quando algum trocista de plantão,me pergunta qual é enfim,meu ganha pão.
-Não, não faço nada, mas penso- Respondo desairoso.
Para ser franco, julgamentos de pessoas tão convencionais assim, como estas, não me dizem muito, fitam-me com olhar de menoscabo,viram-me a cara e taxam-me de vagabundo.
Pobres vítimas....se soubessem.
Não me entendam mal, nada tenho contra o trabalho, o árduo trabalho que garante o pão-nosso-de-cada-dia, mas devo confessar, o que vocês já devem ter notado: não sigo lá muito a cartilha do ora et labora. Ora, não tenho esse direito?
Certo dia,me vi forçado a perguntar ironicamente a uma senhora verdadeiramente detestável se a filosofia, o Direito, enfim, todo pensamento ocidental, que ela tanto cultuava, existiriam sem os gregos e romanos,cujos hábitos, convenhamos,estão longe de consistir no valoroso trabalho.
Aliás, posso até afirmar que suas realizações devem-se inclusive ao tempo livre de que dispunham,proporcionado pelo trabalho escravo, ou seja, elas não faziam terminantemente nada.
Isso sem mencionar o étimo que originou a palavra trabalho, tripaliare que, de forma muito emblemática,significava torturar.
De mais a mais concluí, se trabalho fosse tão gratificante assim, não teria sido ordenado por Deus como castigo pelo pecado original a Adão, tão logo expulso do paraíso.
- De hoje em diante viverás do suor do teu rosto- proferi em tom solene.
Garanto que nunca mais me perturba com suas ladainhas a velha matrona.
Estou convicto,digo isto sem temer qualquer frustração, que as pessoas dividem-se em duas categorias: as que pensam e aquelas que ganham dinheiro.Pensar e ganhar dinheiro cada dia mais se tornam ações colidentes. Ora essa, sempre desejei estar na primeira categoria, é tão-somente este o crime de que me acusam.
Por favor, lembrem-me de escrever a La Fontaine criticando sua fábula. Formigas trabalhadoras e espertas, qual o quê!só mesmo em fábulas. Formigas representam para mim tudo o que há de mais conservador e estúpido.
Não me rotulem mais,me recuso a agir maquinalmente. Me recuso ser autômato....
Estive pensando se não seria exatamente por tudo isto, que desde muito, tenha me identificado tanto, dentre inúmeros escritores que li, com Kafka. De certa forma sinto-me personagem atuante desse universo angustiante e paranóico narrado por ele. Em suas páginas oníricas, lê-se o sem-sentido da vida.
Além de nunca ter publicado em vida um único livro seu, pois em sua grande maioria ele mesmo queimava, relutou bravamente por muitos anos até que concordasse em se sujeitar à ignomínia de um empregozinho tedioso em uma repartição pública enxovalhada. Por fim, viu-se obrigado a render-se à automatização.
Não, não pense que estou aqui a me comparar ao gênio de Kafka, não mil vezes não, o globo terrestre dará milhões de giros antes que nasça outro como ele, mas sim à sua angústia com um mundo que não lhe acolhia e nem lhe compreendia, ao seu repúdio pela opressão quotidiana que a sociedade massificante, com suas fórmulas pré-concebidas e burocráticas do “ilustre cidadão”, lhe impunha.
Quantas vezes me vejo inseto impotente, tragado pela turbilhão de pessoas que exigem de mim a monotonia de uma vida sem-sentido, ou ,esmagado pela vilania e prepotência dos pés dos poderosos.
Mesmo que não tivesse tudo isso a falar de Kafka,ainda assim seria-lhe grato por toda a eternidade.
Por que? Você me pergunta. Bem, o caso é o seguinte:
Há algum tempo conheci uma garota. Chamava-se Marta. Nos conhecemos na universidade e mesmo que em cursos diferentes,à época ambos acabávamos de nos formar.
Não tardou muito, estávamos juntos. Ela fazia um tipo bem elegante e vistoso, me permitam dizer, um tipo desses que chama bastante atenção de todos os rapazes, o que certamente não me desagradava em nada. Qual homem não se sente orgulhoso em exibir seu troféu, depois de conquistada a presa?
Até aqui, esclareça-se, ainda supunha ser eu o caçador, só aos poucos fui me dando conta de nossos exatos papeis
Tudo ia bem nas duas primeiras semanas. Agradabilíssima, fez rapidamente amizade com meus companheiros.Conversava muito bem acerca de qualquer assunto que tratássemos. Em pouco dias, era como se já nos conhecêssemos há muito tempo.
Foi só lá pela terceira semana que os problemas começaram a vir à tona. Havia tão pouco tempo aquela relação, mas já estava fadada a soçobrar.
Não sei se lhes assusto com minha franqueza, mas estou seguro de que toda relação, seja ela qual for, perpassa pelo interesse.
Amigos, apenas são amigos por que ambos lucram com suas amizades. Entre homem e mulher não há qualquer diferença ,fica-se junto a alguém quando isto lhe é mais vantajoso que permanecer só. Neste caso,entretanto, já não existia mais qualquer motivo que me prendesse a ela, só não via como me liberar sem grandes transtornos daquele opróbrio.
O primeiro fato que me fez começar a olhá-la de outra maneira, ocorreu em um dia que sem quê nem para quê, começou a falar de casamento. Disse de sua vizinha que havia casado, que possuíam quase a nossa idade os noivos, que lhe caia bem o branco, coisas do gênero.
Em outra ocasião, falou-me que as mulheres costumam casar-se tão logo se formam. A partir daí, toda oportunidade que dispunha de retornar ao tema o fazia sem nenhum constrangimento.
Não culpo as mulheres por essa verdadeira necessidade que possuem de segurança. Creio que esteja indelevelmente impresso na alma feminina , tanto quanto tomar uma cervejinha com as amigos, na do homem.Mas, francamente, essa batalha que travam em sua busca é algo de odioso.
Até então, todavia, nada havia ainda que me tirasse o sono, nada que não pudesse simplesmente ignorar. A gota d’água, de fato, somente foi deflagrada quando Marta começou a queixar-se e cobrar-me acerca de emprego; que já deveria estar empregado; que se pensava em constituir família algum dia,essas coisas de toda mulher!
Ah! Aquilo se tornara completamente irremediável.
Detesto admitir, mas nunca soube muito bem como por fim a uma relação. Devo ter faltado a esta aula.Culpem-me do que mais convenientemente lhes parecer, veleidade ou covardia sexual, mas o fato é este. Tanto pior agora me parecia, pois que não havia qualquer pretexto que justificasse o fim, porquanto Marta não houvesse de maneira nenhuma tornado claras suas pretensões a meu respeito.
Tolo diante dos sutis estratagemas femininos, supus que simplesmente me tornando, digamos, menos afetuoso aos seus carinhos, Marta deliberadamente por vontade própria tomaria a decisão da separação.
Ledo engano. Ela certamente percebendo minhas intenções, tornara-se ainda mais compreensiva e terna. Duas semanas da mais vil afabilidade transcorreram sem com que nada de novo ocorresse
Pouco a pouco suas investidas e minhas reticências, sem dúvidas, se transformavam em palco de uma verdadeira disputa de xadrez e eu não tinha dúvidas de quem ditava as regras.
Quando dei por mim, apresentava-me a todos os parentes, se acaso deixava de lhe ver, ia ao meu encontro. Tornara-se evidente que Marta evitava qualquer espécie de confronto direto.
Não sabia mais o que fazer, dei-me por vencido, assim passaram-se mais três semanas de mais torturas e tormentos.
Certo dia, fui a sua casa.
-Como vai?- Disse-me como de costume logo depois de me lançar aquele olhar cínico e atencioso
-Bem- disse sem muito elã - como foi seu dia ?- perguntou-me com seu jeito deplorável de sempre.
-Bom- respondi com a aspereza habitual.
-Que trazes a mão? Tentou puxar assunto.
-um livro- mal me certificava da obviedade da resposta.Era uma volume de “ o Castelo” de Kafka.
-Kafka, muito bem, não era aquele alemão que escreveu “A barata”?-inquiriu.
-Kafka era tcheco- respondi –e, desculpe-me, mas o livro se chamava “a metamorfose”.
-Que diferença faz ?- disse pilheriando-me - só escreve besteiras mesmo.
-Besteiras? Os absurdos que escrevia, Marta, apenas refletiam nossas realidades quotidianas, eram críticas a uma situação análoga- talvez não percebesse meu tom acintoso, mas o fato é que começava a se deixar levar. De esguelha atirou-me um olhar que lançava chispas e retrucou.
-ah! Eu, no meu caso,aprecio muito mais algo, digamos, mais elaborado como Proust.
Tenho a mais manifesta certeza de que jamais lera Proust,nem ao menos coisa que o valha. Seu conhecimento,me certificava agora, não passava de superficialidades. Não sei se posso ao menos chamar de conhecimento,o que ela possuía. Como a esmagadora maioria de idiotas da pós-modernidade se resumia seu conhecimento a informação, a mais barata e medíocre informação.
Falava-me com propriedade de livros e autores que nunca havia lido de fato. Com Kafka percebia seu truque.
Foi exatamente neste momento que observei um traço de sua personalidade que desconhecia por completo. Em tudo se deixava levar para me agradar, contudo, possuía, percebi, um medo obtuso de passar-se por ignorante. Atentei-me para arrogância com que pronunciava o nome de Proust.
Fiat lux, veio-me a inspiração, a idéia fulgurante irrompeu, lívida, em minha cabeça. É Por tudo isto, que tanto tenho a agradecer a Kafka. Mostrou-me a carta de alforria. De súbito voltei-me pra ela e disse em tom de bravata.
-Aposto que se falas isto, é porque, na realidade, não o entendes?
-Kafka? Deixou escapar um riso desdenhoso.Deu-me as costas fingindo mexer em alguns objetos ao redor. Procurava esconder os ânimos que se exaltavam. Não me impacientei, tratava não perder a fleuma. Sabia que aquela era uma oportunidade que dificilmente encontraria semelhante tão cedo novamente. Havia descoberto o seu calcanhar de Aquiles.
-É- continuei insistente- Não entendes suas metáforas, suas metáforas irônicas.
-Metáforas irônicas? Meu Deus, Kafka escrevia coisas tolas, sem sentido algum ,seria como dar papel e tinta para uma criança e chamar o resultado disto tudo de arte.
Aos poucos ia se deixando levar pela cólera e perdendo gradativamente aquele seu detestável ar de compreensão. Estava certo que dali a pouco não conseguiria mais evitar que suas garras escapassem.
Não, não me deixaria subjugar desta vez, estava disposto a tudo. Marta não mais me utilizará como joguete de seus planos opressores.Jamais me arrastará ao cadafalso como pensa.
Trabalho,imaginem! Se deixasse, ela em pouco tempo me transformaria em mais um desses paspalhões que existem a rodo por ai. Arranjava-me um sórdido empreguinho em alguma loja de departamentos infecta, empurrava-me um ordinário par de alianças goela abaixo, prendia-me uma coleira à garganta e desfilaria comigo por ai, como seu cãozinho burguês.
De bestas de carga titereadas nosso mundo já possui em demasia. Não faço questão de aumentar o rol.
Certifiquei-me de que o momento era realmente o oportuno. Marta estava a poucos passos de perder o desalinho. Lancei então os dados.
-As metáforas irônicas a que me refiro Marta, certamente seria o que Kafka escreveria sobre nós se vivo fosse.
Disse isto e esperei finalmente que glória me sorrisse e para minha completa alegria, ela não me voltou as costas. O furor enrubesceu o rosto de Marta em segundos. Embevescida, arfava convulsivamente como se lutasse contra um inimigo feroz, numa luta fatigante e sangrenta. Perdera por completo a compostura, deixava-se sucumbir pela ira. Abandonava finalmente seu trono seguro e despótico para combater com armas no meio de seus paladinos. Marta, sempre de gênios tão pouco agitados agora vociferava como as feras. Em um piscar de olhos voltou-se pra mim e disse-me já, praticamente aos brados.
-Para mim chega, se não bastasse seu jeito inconseqüente, não pensa no futuro,não procura sequer um emprego, me trata sem quase nenhum afago, e ainda sente-se habilitado a falar de “nós” como se não estivesse sempre ausente de qualquer compromisso. Não, eu desisto, para mim não dá mais.
Sorri satisfeito, ela havia mordido a isca Obviamente não demonstrei, não iria estragar minha brilhante atuação. Por um momento, para ser bastante franco, até me compadeci,hesitei ainda,estive para voltar atrás, mas conhecia demasiadamente bem o poder convincente de seu ar lúgubre para me deixar levar. Não deixaria a liberdade escorrer por entre os dedos mais uma vez, era minha grande chance, a cartada final.
-Marta, acalme-se, quando disse nós, não me referia propriamente a nós, isto é, eu e você, mas simplesmente a nós, sociedade, nós-jovens, nós-desempregados,enfim,você me interpretou erroneamente, mas de qualquer maneira, tiramos algum proveito disto, porque demonstra a superficialidade e fragilidade de nossa relação e que nunca acabaríamos por dar certo. Fiquemos por aqui- Abaixei a cabeça e fui tomando o caminho da rua, ela me reteve.
Como de fato já cogitava anteriormente, tentou de imediato uma reconciliação, mas já era tarde demais pra evitar o irremediável, havia vencido aquela batalha ardilosa e oculta que se travava entre mim e ela, disso era conhecedora.Olhou-me ainda pela última vez, como a se despedir, desta vez sem dramas, afinal, tinha plena consciência de que eu era vencedor em uma luta justa, sem trapaças.Conhecíamos as regras. Retribui seu olhar terno.Depusemos as armas.
Após alguns minutos que estivemos assim, tácitos,dei-lhe as costas, desci as escadas e alcancei a rua. Apenas depois de já haver avançado alguns passos dei-me conta de que havia esquecido sobre a mesa o livro que trazia comigo. Ainda pensei em retornar para apanhá-lo, mas desisti.Resolvi deixá-lo como presente a Marta, uma espécie de compensação,despojos de guerra, só que às avessas, pois, nada lhe havia pilhado´=, muito pelo contrário, era eu quem lhe ofertava a recompensa, aliás, deixava-lhe algo cujo valor era inestimável, afinal, nunca se sabe quando Kafka lhe pode ser útil.
E o que fazer com um homem quando ele é a Marta? Tentei Kafka e os cambau e no final tive mesmo é que pegar um avião e ir pra bem longe...tanto da pequenez dos projetos quanto da mediocridade da alma do cidadão...
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