quinta-feira, 7 de outubro de 2010

NOTAS SOBRE UM KAFKIANO VAGABUNDO E DESAIROSO

 Desde muito, tinham-me por um menino prodígio, um futuro brilhante sonhavam pra mim. Acho que de certa forma, aceitei este papel sem muito relutar. Bem, se não aceitei, pelo menos nunca me opus veementemente a ele, talvez pelo fato de ele saciar um pouco minha vaidade subjacente. Com o passar do tempo, todavia ,todos foram se dando conta de que nunca passaria disto, do que verdadeiramente sempre fui ao longo de todos esses anos, ou seja, apenas uma grande promessa, nada mais.
Certamente, estou seguro de que não sou do tipo de pessoa em que apostaram, a qual se diga que haja vencido na vida, como todos nós estamos acostumados a ouvir, de ar afetado e vitorioso com seu carro na garagem.
 Sempre estive certo que fosse coisa muito mais útil fazer o que me apraz, mesmo que isto significasse fazer algo que não me desse quase nenhuma recompensa financeira ou, porque não? Não fazer nada.Recorro ao direito inato que todo homem possui de não fazer rigorosamente nada, o que, è preciso que se esclareça, em absoluto significa não ter nada pra fazer,mas sim, ter a dádiva que tão comumente nos é rechaçada do dolce far niente.
A despeito disto,o que me parece verdadeiramente exasperante é perceber que, de sua parte, as pessoas, em sua grande maioria,moldam seus sonhos mais primordiais,calcados em valores tacanhos, os quais nos foram empurrados goela abaixo desde criança.Daqui, por conseguinte,surge o : crescer, casar-se,ter filhos, trabalhar e ao final, os louros da glória: vencer na vida.
O que isto significa? Não lhes pergunte.Basta seguir a formulazinha usual, o que obviamente, inclui o edificante trabalho,mesmo que seja para garantir a paga miserável e mesquinha de todo mês.
Se não bastasse isto, o que a mim me parece tanto pior,cobram de você também a mesma vidazinha insípida. Esteja seguro.

Trabalhe,case-se,seja autômato.
Sito-me como alguém que ficou olhando o trem da vida passar e esqueceu-se de embarcar no vagão dos homens de bem, quando algum trocista de plantão,me pergunta qual é enfim,meu ganha pão.
-Não, não faço nada, mas penso- Respondo desairoso.
Para ser franco, julgamentos de pessoas tão convencionais assim, como estas, não me dizem muito,  fitam-me com olhar de menoscabo,viram-me a cara e  taxam-me de vagabundo.
Pobres vítimas....se soubessem.
Não me entendam mal, nada tenho contra o trabalho, o árduo trabalho que garante o pão-nosso-de-cada-dia, mas devo confessar, o que vocês já devem ter notado: não sigo lá muito a cartilha do ora et labora. Ora, não tenho esse direito?
Certo dia,me vi forçado a perguntar ironicamente a uma senhora verdadeiramente detestável se a filosofia, o Direito, enfim, todo pensamento ocidental, que ela tanto cultuava, existiriam sem os gregos e romanos,cujos hábitos, convenhamos,estão longe de consistir no valoroso trabalho.
Aliás, posso até afirmar que suas realizações devem-se inclusive ao tempo livre de que dispunham,proporcionado pelo trabalho escravo, ou seja, elas não faziam terminantemente nada.
Isso sem mencionar o étimo que originou a palavra trabalho, tripaliare que, de forma muito emblemática,significava torturar.
De mais a mais concluí, se trabalho fosse tão gratificante assim, não teria sido ordenado por Deus como castigo pelo pecado original a Adão, tão logo expulso do paraíso.
- De hoje em diante viverás do suor do teu rosto- proferi em tom solene.
Garanto que nunca mais me perturba com suas ladainhas a velha matrona.
Estou convicto,digo isto sem temer qualquer frustração, que as pessoas dividem-se em duas categorias: as que pensam e aquelas que ganham dinheiro.Pensar e ganhar dinheiro cada dia mais se tornam ações colidentes. Ora essa, sempre desejei estar na primeira categoria, é tão-somente este o crime de que me acusam.
 Por favor, lembrem-me de escrever a La Fontaine criticando sua fábula. Formigas trabalhadoras e espertas, qual o quê!só mesmo em fábulas. Formigas representam para mim tudo o que há de mais conservador e estúpido.
Não me rotulem mais,me recuso a agir maquinalmente. Me recuso ser autômato....
Estive pensando se não seria exatamente por tudo isto, que desde muito, tenha me identificado tanto, dentre inúmeros escritores que li, com Kafka. De certa forma sinto-me personagem atuante desse universo angustiante e paranóico narrado por ele. Em suas páginas oníricas, lê-se o sem-sentido da vida.
Além de nunca ter publicado em vida um único livro seu, pois em sua grande maioria ele mesmo queimava, relutou bravamente por muitos anos até que concordasse em se sujeitar à ignomínia de um empregozinho tedioso em uma repartição pública enxovalhada. Por fim, viu-se obrigado a render-se à automatização.
 Não, não pense que estou aqui a me comparar ao gênio de Kafka, não mil vezes não, o globo terrestre dará milhões de giros antes que nasça outro como ele, mas sim à sua angústia com um mundo que não lhe acolhia e nem lhe compreendia, ao seu repúdio pela opressão quotidiana que a sociedade massificante, com suas fórmulas pré-concebidas e burocráticas do “ilustre cidadão”, lhe impunha. 
Quantas vezes me vejo inseto impotente, tragado pela turbilhão de pessoas que exigem de mim a monotonia de uma vida sem-sentido, ou ,esmagado pela vilania e prepotência dos pés dos poderosos.  
Mesmo que não tivesse tudo isso a falar de Kafka,ainda assim seria-lhe grato por toda a eternidade.
Por que? Você me pergunta. Bem, o caso é o seguinte:
Há algum tempo conheci uma garota. Chamava-se Marta. Nos conhecemos na universidade e mesmo que em cursos diferentes,à época ambos acabávamos de nos formar.
Não tardou muito, estávamos juntos. Ela fazia um tipo bem elegante e vistoso, me permitam dizer, um tipo desses que chama bastante atenção de todos os rapazes, o que certamente não me desagradava em nada. Qual homem não se sente orgulhoso em exibir seu troféu, depois de conquistada a presa?
Até aqui, esclareça-se, ainda supunha ser eu o caçador, só aos poucos fui me dando conta de nossos exatos papeis
Tudo ia bem nas duas primeiras semanas. Agradabilíssima, fez rapidamente amizade com meus companheiros.Conversava muito bem acerca de qualquer assunto que tratássemos. Em pouco dias, era como se já nos conhecêssemos há muito tempo. 
Foi só lá pela terceira semana que os problemas começaram a vir à tona. Havia tão pouco tempo aquela relação, mas já estava fadada a soçobrar.
Não sei se lhes assusto com minha franqueza, mas estou seguro de que toda relação, seja ela qual for, perpassa pelo interesse.
 Amigos, apenas são amigos por que ambos lucram com suas amizades. Entre homem e mulher não há qualquer diferença ,fica-se junto a alguém quando isto lhe é mais vantajoso que permanecer só. Neste caso,entretanto, já não existia mais qualquer motivo que me prendesse a ela, só não via como me liberar sem grandes transtornos daquele opróbrio.
O primeiro fato que me fez começar a olhá-la de outra maneira, ocorreu em um dia que sem quê nem para quê, começou a falar de casamento. Disse de sua vizinha que havia casado, que possuíam quase a nossa idade os noivos, que lhe caia bem o branco, coisas do gênero.
Em outra ocasião, falou-me que as mulheres costumam casar-se tão logo se formam. A partir daí, toda oportunidade que dispunha de retornar ao tema o fazia sem nenhum constrangimento.
Não culpo as mulheres por essa verdadeira necessidade que possuem de segurança. Creio que esteja indelevelmente impresso na alma feminina , tanto quanto tomar uma cervejinha com as amigos, na do homem.Mas, francamente, essa batalha que travam em sua busca é algo de odioso.
Até então, todavia, nada havia ainda que me tirasse o sono, nada que não pudesse simplesmente ignorar. A gota d’água, de fato, somente foi deflagrada quando Marta começou a queixar-se e cobrar-me acerca de emprego; que já deveria estar empregado; que se pensava em constituir família algum dia,essas coisas de toda mulher!
 Ah! Aquilo se tornara completamente irremediável.
Detesto admitir, mas nunca soube muito bem como por fim a uma relação. Devo ter faltado a esta aula.Culpem-me do que mais convenientemente lhes parecer, veleidade ou covardia sexual, mas o fato é este. Tanto pior agora me parecia, pois que não havia qualquer pretexto que justificasse o fim, porquanto Marta não houvesse de maneira nenhuma tornado  claras suas pretensões a meu respeito.
Tolo diante dos sutis estratagemas femininos,  supus que simplesmente me tornando, digamos, menos afetuoso aos seus carinhos, Marta deliberadamente  por vontade própria tomaria a decisão da separação.
Ledo engano. Ela certamente percebendo minhas intenções, tornara-se ainda mais compreensiva e terna. Duas semanas da mais vil afabilidade transcorreram sem com que nada de novo ocorresse
Pouco a pouco suas investidas e minhas reticências, sem dúvidas, se transformavam em palco de uma verdadeira disputa de xadrez e eu não tinha dúvidas de quem ditava as regras.
Quando dei por mim, apresentava-me a todos os parentes, se acaso deixava de lhe ver, ia ao meu encontro. Tornara-se evidente que Marta evitava qualquer espécie de confronto direto.
Não sabia mais o que fazer, dei-me por vencido, assim passaram-se mais três semanas de mais torturas e tormentos.
Certo dia, fui a sua casa.
-Como vai?- Disse-me como de costume logo depois de me lançar aquele olhar cínico e atencioso
-Bem- disse sem muito elã - como foi seu dia ?- perguntou-me com seu jeito deplorável de sempre.
-Bom- respondi com a aspereza habitual.
-Que trazes a mão? Tentou puxar assunto.
-um livro- mal me certificava da obviedade da resposta.Era uma volume de “ o Castelo” de Kafka.
-Kafka, muito bem, não era aquele alemão que escreveu “A barata”?-inquiriu.
-Kafka era tcheco- respondi –e, desculpe-me, mas o livro se chamava “a metamorfose”.
-Que diferença faz ?- disse pilheriando-me - só escreve besteiras mesmo.
-Besteiras? Os absurdos que escrevia, Marta, apenas refletiam nossas realidades quotidianas, eram críticas a uma situação análoga- talvez não percebesse meu tom acintoso, mas o fato é que começava a se deixar levar. De esguelha atirou-me um olhar que lançava chispas e retrucou.
-ah! Eu, no meu caso,aprecio muito mais algo, digamos, mais elaborado como Proust.
Tenho a mais manifesta certeza de que jamais lera Proust,nem ao menos coisa que o valha. Seu conhecimento,me certificava agora, não passava de superficialidades. Não sei se posso ao menos chamar de conhecimento,o que ela possuía. Como a esmagadora maioria de idiotas da pós-modernidade se resumia seu conhecimento a informação, a mais barata e medíocre informação.
Falava-me com propriedade de livros e autores que nunca havia lido de fato. Com Kafka percebia seu truque.
Foi exatamente neste momento que observei um traço de sua personalidade que desconhecia por completo. Em tudo se deixava levar para me agradar, contudo, possuía, percebi, um medo obtuso de passar-se por ignorante. Atentei-me para arrogância com que pronunciava o nome de Proust. 
Fiat lux, veio-me a inspiração, a idéia fulgurante irrompeu, lívida, em minha cabeça. É Por tudo isto, que tanto tenho a agradecer a Kafka. Mostrou-me a carta de alforria. De súbito voltei-me pra ela e disse em tom de bravata.
-Aposto que se falas isto, é porque, na realidade, não o entendes?
-Kafka? Deixou escapar um riso desdenhoso.Deu-me as costas fingindo mexer em alguns objetos ao redor. Procurava esconder os ânimos que se exaltavam. Não me impacientei, tratava não perder a fleuma. Sabia que aquela era uma oportunidade que dificilmente encontraria semelhante tão cedo novamente. Havia descoberto o seu calcanhar de Aquiles.

-É- continuei insistente- Não entendes suas metáforas, suas metáforas irônicas.
-Metáforas irônicas? Meu Deus, Kafka escrevia coisas tolas, sem sentido algum ,seria como dar papel e tinta para uma criança e chamar o resultado disto tudo de arte.
Aos poucos ia se deixando levar pela cólera e perdendo gradativamente aquele seu detestável ar de compreensão. Estava certo que dali a pouco não conseguiria mais evitar que suas garras escapassem.
Não, não me deixaria subjugar desta vez, estava disposto a tudo. Marta não mais me utilizará como joguete de seus planos opressores.Jamais me arrastará ao cadafalso como pensa.
Trabalho,imaginem! Se deixasse, ela em pouco tempo me transformaria em mais um desses paspalhões que existem a rodo por ai. Arranjava-me um sórdido empreguinho em alguma loja de departamentos infecta, empurrava-me um ordinário par de alianças goela abaixo, prendia-me uma coleira à garganta e desfilaria comigo por ai, como seu cãozinho burguês.
De bestas de carga titereadas nosso mundo já  possui em demasia. Não faço questão de aumentar o rol.
Certifiquei-me de que o momento era realmente o oportuno. Marta estava a poucos passos de perder o desalinho. Lancei então os dados.
-As metáforas irônicas a que me refiro Marta, certamente seria o que Kafka escreveria sobre nós se vivo fosse.
Disse isto e esperei finalmente que glória me sorrisse e para minha completa alegria, ela não me voltou as costas. O furor enrubesceu o rosto de Marta em segundos. Embevescida, arfava convulsivamente como se lutasse contra um inimigo feroz, numa luta fatigante e sangrenta. Perdera por completo a compostura, deixava-se sucumbir pela ira. Abandonava finalmente seu trono seguro e despótico para combater com armas no meio de seus paladinos. Marta, sempre de gênios tão pouco agitados agora vociferava como as feras. Em um piscar de olhos voltou-se pra mim e disse-me já, praticamente aos brados.
-Para mim chega, se não bastasse seu jeito inconseqüente, não pensa no futuro,não procura sequer um emprego, me trata sem quase nenhum afago, e ainda sente-se habilitado a falar de “nós” como se não estivesse sempre ausente de qualquer compromisso. Não, eu desisto, para mim não dá mais.
Sorri satisfeito, ela havia mordido a isca Obviamente não demonstrei, não iria estragar minha brilhante atuação. Por um momento, para ser bastante franco, até me compadeci,hesitei ainda,estive para voltar atrás, mas conhecia demasiadamente bem o poder convincente de  seu ar lúgubre para me deixar levar. Não deixaria a liberdade escorrer por entre os dedos mais uma vez, era minha grande chance, a cartada final.
-Marta, acalme-se, quando disse nós, não me referia propriamente a nós, isto é, eu e você, mas simplesmente a nós, sociedade, nós-jovens, nós-desempregados,enfim,você me interpretou erroneamente, mas de qualquer maneira, tiramos algum proveito disto, porque demonstra a superficialidade e fragilidade de nossa relação e que nunca acabaríamos por dar certo. Fiquemos por aqui- Abaixei a cabeça e fui tomando o caminho da rua, ela me reteve.
Como de fato já cogitava anteriormente, tentou de imediato uma reconciliação, mas já era tarde demais pra evitar o irremediável, havia vencido aquela batalha ardilosa e oculta que se travava entre mim e ela, disso era conhecedora.Olhou-me ainda pela última vez, como a se despedir, desta vez sem dramas, afinal, tinha plena consciência de que eu era vencedor em uma luta justa, sem trapaças.Conhecíamos as regras. Retribui seu olhar terno.Depusemos as armas. 
Após alguns minutos que estivemos assim, tácitos,dei-lhe as costas, desci as escadas e alcancei a rua. Apenas depois de já haver avançado alguns passos dei-me conta de que havia esquecido sobre a mesa o livro que trazia comigo. Ainda pensei em retornar para apanhá-lo, mas desisti.Resolvi deixá-lo como presente a Marta, uma espécie de compensação,despojos de guerra, só que às avessas, pois, nada lhe havia pilhado´=, muito pelo contrário, era eu quem lhe ofertava a recompensa, aliás, deixava-lhe algo cujo valor era inestimável, afinal, nunca se sabe quando Kafka lhe pode ser útil.

quinta-feira, 26 de fevereiro de 2009

O ALUNO QUA NÃO SABIA O QUE O AUTOR QUERIA DIZER





Não era mau aluno, na maior parte das disciplinas se saia muito bem, acima da média dos colegas. Foi difícil para ele, acostumado que estava a sentir-se envaidecido por suas notas, ver sua prova tingida de rubro, profanada, cheia de riscos do começo ao fim. Olhou em torno de si procurando esconder seu vexame, como delinqüente que se desfaz das provas do crime. Em vão, impossível fora à turma não perceber os garranchos fulgurantes do professor, que devassavam a folha de papel que outrora se caracterizava por sua cândida limpeza.
Pensou tratar-se de um erro. Talvez a prova não fosse a sua. Talvez lera enganado seu nome. Encostou-se à mesa do professor, alçou a cabeça por sobre os ombros dos colegas e confirmou sua sentença: Era mesmo sua prova.
Teve vergonha e envergou um pouco a cabeça desviando-se do olhar severo do professor, já um tanto velho, não obstante de idade não tão avançada, com um austero e volumoso bigode que lhe encobria os lábios. Chamando o aluno, o professor anunciou a plenos pulmões sua nota e lhe aconselhou a intensificar os estudos.

Aos poucos, os olhares curiosos dos outros meninos voltaram-se a ele como a pedir explicação da reprimenda.

Aprumou-se, procurou recuperar a altivez que sempre cultivara. Retomou os sentidos abalados pelos olhares sôfregos e dirigiu-se ao professor. Questionou , argumentou, respeitoso pediu explicações, não se deu por vencido em nenhum instante.

O professor mostrara-se impassível, cheio de si, não se irritava por tão pouco, características das pessoas fleumáticas e parvas. O aluno insistia, pungente, os olhos em brasa tatuados pela incompreensão. Escutava a todo instante :“ mas não foi isto o que quis dizer o autor”, “ mas não foi.....” da boca do professor justificando o veredicto.

Por fim, a lassidão derribou as barreiras que ainda a separavam do aluno. Resignou-se consternado.

Assim ocorreu duas ou mais vezes ainda sem que o aluno conseguisse entender o porquê de seus sucessivos fracassos. “ Mas apenas nesta matéria”, pensava inconformado. Mesmo longe dos livros e do professor carrancudo já escutava a frase, retumbando impiedosa em sua cabeça: “ Mas não foi isso que o autor quis dizer”

Perguntou-se várias e várias vezes como, afinal de contas, poderiam, o professor e sua floresta sobre a boca, saber o que, de fato, o autor quis dizer sobre tais e tais obras.

Pensou que o interessante não era mais saber o que o autor quis ou não quis dizer. Era a arte que sobrepunha o artista como o filho que precisa do pai apenas para lhe dar vida, trazer-lhe ao mundo, emprestar-lhe sua semelhança- cor dos cabelos, olhos, etc...-. Para o aluno, a arte não era propriedade do autor ou do artista, era dele, dos colegas e até do bigode profuso que pretendia conhecer o pensamento de cada autor. A arte para o aluno franzino, apenas se utilizava do artista, seu instrumento. Não entendia esta arte tão austera do velho professor, mais se parecia com a matemática, só que nesta, sempre tirava notas excelentes. Comparava a arte tal qual um objeto visto do interior de um prédio, onde cada morador- dependendo do ângulo, do andar, das sombras- o veria de uma forma diferente, sob aspecto em que o outro morador não poderia ver.

Certo dia, o aluno abatido, estirado sobre a carteira da sala de aula, absorto, viajando pelo seu mundo de cores e sonhos, escutou a voz rouca de contra-baixo, voz de quem há muito não é interrompido em suas aulas. Voz firme e pausada, segura, voraz, devoradora dos questionamentos da classe.
- (...) porque foi assim que Deus o quis.

O aluno, incompreendido, agitou-se, iluminado, translúcido, deixando escapar sua euforia. O mestre, surpreso do estardalhaço do aluno volveu-se com a mesma fleuma de quem despreza a opinião de todos. Mordaz, perguntou:

-o aluno quer fazer alguma consideração ? A classe alvoroçada concentrou os olhares no aluno lívido.

- Na verdade, mestre- falava o aluno com tom de voz até então desconhecido pela classe- me permita dizer, só agora entendi o que o senhor quis dizer com “ não foi isto o que o autor quis dizer”- O zum-zum-zum virulento tomou conta da turma, empestando o ambiente.

O professor, confuso, pois jamais qualquer aluno lhe havia falado daquela forma, aquiesceu com o jogo que o aluno formava para descobrir, de uma vez por todas, como acabaria.

- ah! É verdade, então explique para turma.

O aluno enfiou a mão sobre a bolsa e puxou um volume, era a bíblia que todos os alunos traziam consigo para as aulas de religião. Ergueu o livro à altura da cabeça para que todos vissem e não apenas o professor.

- O senhor já leu este livro, não estou certo ?- o moço-velho aquiesceu apenas arregalando os olhos.- pois então, o senhor conhece e fala com os autores, não é ?- os olhos altaneiros do garoto percorriam as faces empedernidas dos outros alunos, com suas bocas entreabertas, vindo pousar nos olhos de lince e por último no bigode de leão-marinho do professor.

- O senhor fala com Deus não é mesmo? É isto, o senhor fala com Deus.

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Após muitos anos de sua expulsão, o garoto, já homem maduro e respeitável, seguindo sempre o conselho do mestre de intensificar os estudos, tornou-se um escritor renomado. A escola até passou a aconselhar os professores a usarem seus livros, esqueceu que o havia expulsado - não ficaria bem para o nome da escola -. O velho professor, agora velho de fato, ainda fazia parte do quadro de professores da escola, lecionava a mesma matéria- agora com o livro do aluno- e teimava em dizer: “ não foi isto que o autor quis dizer”.



-FIM-

terça-feira, 17 de fevereiro de 2009

A ILHA DOS ELEITOS



Agora estava só. Não tão-somente a sós, mas só, no pleno sentido da palavra, porquanto tomava minhas próprias decisões, sem precisar de ninguém para decidir por mim; ninguém para julgá-las certas ou erradas. Era apenas eu e mim mesmo agora, longe da Ilha do Amor. Estava apenas a poucos dias distante da Ilha e, vejam só, era como se fossem meses. Ver tudo com meus próprios olhos: uma novidade assustadora, ainda demoraria a me acostumar. Na ilha dos eleitos, não se fazia praticamente nada sem antes “ver com alguém”: era a regra. Poderia ter dado certo pra alguns, mas pra mim as coisas funcionavam um pouco diferente. Não é que não consiga me submeter às regras, mas não posso pensar em simplesmente “acreditar” sem nenhum porquê, sem nenhuma explicação convincente. Talvez os outros, lá na Ilha, estejam mais felizes que eu; talvez quem apenas siga o caminho já percorrido ,assim como as formigas, não tenha com o que se preocupar e assim viva mais feliz, sem porquês nem dúvidas existenciais. Por vezes me pergunto se os irmãos são mesmo felizes ainda ou apenas não têm mais coragem de fazer como eu e partir. Os poucos que sumiram, me ocorre agora, talvez não tenham sido devorados pelo “bicho-mundo”, ai! Pélo-me de medo só ao pronunciar este nome. Também pudera, o bicho-mundo me apavora desde que me entendo por gente. “Ele é muito, muito mau” lembro-me da frase pronunciada por alguém durante minha infância. “ Tem muitos filhos, muito mais do que nós e escraviza todos”, me via ora sendo tragado,ora escravizado por tão temível criatura. “Ele pode te iludir a pensar que ele é bom e que tudo, tudo é normal....ele é mágico” eu mesmo ensinava nas aulas de moral. Quem diria?!, vocês podem acreditar,eu, dando aulas de moral insular para os mais jovens? Eu, o proscrito? O subversivo? O que não tolerava o embrutecimento?. Pois bem, eu já acreditei bastante. Durante a infância era como todos os outros, só ia às aulas de moral por obrigação, sequer escutava o tagarelar decrépito dos irmãos. Depois não, a coisa realmente me tomou, eu também me via, sem perceber, falando daquele jeito, agindo daquela forma cujos irmãos pregavam. O amor, a paz, a fraternidade eram também minha conduta de vida.

Enquanto remava ia pensando na filosofia. Foi aos poucos que fui me dando conta da hipocrisia de alguns irmãos, não de todos, sejamos justos. De fato, alguns irmãos eram muito bravos no que tange à filosofia. Infelizmente, hoje começo a perceber que onde exista mais de uma pessoa, existirá também a dominação, sutil, corruptora, que se alastra destruindo a escolha primária da filosofia. Tremia dos pés à cabeça, não deixava de remar, no entanto. A pequena canoa que pude arranjar mal dava para cortar as ondas do rio. Não era medo oriundo do pânico, era mais um frio que desce pela espinha tomando o corpo. Era o medo do desconhecido. O medo de estar certo e não ter nenhum bicho-mundo para me devorar nem pessoas escravizadas em suas correntes, mas apenas pessoas, assim como eu, vivendo em uma aldeia, assim como a nossa, contudo sem a filosofia. Por outro lado, medo de tudo isso ser apenas uma das ilusões do bicho, tão famoso por tais ilusões.

Como estava dizendo, alguns irmãos viviam na mais pura hipocrisia. Talvez não fossem de todo maliciosos,conquanto desfrutassem de regalias as quais os outros membros da Ilha jamais sonhariam em ter.Creio que, com o decorrer do tempo, acabaram por substituir aqueles ideais da filosofia pela mera aparência. Aos poucos o sistema passou a ter mais importância que as próprias pessoas.

Não pude deixar de me abater quando comecei a me dar conta do que de fato acontecia. “Longe da filosofia e de nossa Ilha só há infelicidade”, sabíamos desde criancinha.Uma fraternidade que preze mais pelo sistema que por seus próprios membros não pode, todavia, prosperar, ou melhor, prosperar pode, mas tende a ir se tornando perversa e insensível. Acaba por trocar os fins pelos meios. Quando víamos que um ou outro irmão, sodomita, se corrompia, obviamente de maneira velada, pois nenhum jamais faria isso a olhos vistos, deveríamos pensar : a culpa é individual e não da filosofia.

Amainei as remadas, estava exausto.As ondas solapavam o casco inerme. Agora já conseguia ver, como da primeira vez, a tribo. Possuíam estruturas estranhas, que, daqui de longe, pareciam-me casas. Eram muitas e com um aspecto hermético, formando algo que me lembrava colméias, isso !, insólitas colméias. Havia ido longe demais para retroceder. Divisei pequenos objetos luzidios que se movimentavam rapidamente, feitos provavelmente de um material coruscante estranho, que refletia os raios do sol. Ainda não posso afirmar com segurança se são ou não amistosos.

Agradava-me o clima idílico que experimentávamos na fraternidade. Na Ilha dos sobrenaturais não faltavam oportunidades de colocarmos em prática a filosofia.Alguém,entretanto,que insiste em ter convicções próprias, tende a ser expelido do sistema. É Certo que nenhum irmão sujaria as próprias mãos, é você quem é o diferente: é você que acaba por se afastar. Vivíamos na ditadura da maioria, a maioria agregativa; na ditadura do coletivo; na ditadura do amor. Aquele que fugisse a esse padrão ou era louco ou subversivo.Confesso que sempre tive algo de heterodoxo.

Não foi de súbito que me vi fora do sistema, apenas tornei-me,com o decorrer do tempo, inconveniente aos olhos da comunidade do amor perfeito. As intrigas surgiam a torto e a direito e quase sempre envolviam meu nome. Manifestar às claras oposição era proibido perante a filosofia. A opressora caridade me pungia os rins com um golpe agudo e surdo. Não percebiam, mas acabavam por primar às aparências, criando seres cuja sordidez era copiosa. Tornei-me, não sei como, perigoso ao sistema.

Não sei se em decorrência disso, fui-me questionando acerca do bicho-mundo. Será que era tão perigoso como diziam os irmãos do amor imaculado? Será que ao menos existia? Será que realmente morava após a baia, do outro lado da ilha? Ao mesmo tempo, surgiam-me outras dúvidas: Por que éramos somente nós ali, naquela ilha? Por que os primeiros irmãos fugiram do bicho-mundo para fundá-la?Eram perguntas que não calavam, esperando respostas convincentes.

Creio que a discussão foi a gota d’água. Agora era um proscrito, um proscrito tácito ,digamos, um auto-proscrito. Como havia dito, às vezes a ignorância é uma dádiva. Talvez só os ignorantes estejam aptos a ser felizes. Tanto os ignorantes congênitos quanto os conscientes. O ignorante-contumaz ou inveterado , como queiram, desse, nem se o diga....esse morre de tanta felicidade, tudo é belo e maravilhoso. Eu realmente me excedi, perdi os limites. A ira me tomara a alma, meus olhos lançavam chispas, bruxuleavam mais que as tochas em torno. Nem mesmo as lufadas de vento que costumavam soprar nas noites da ilha foram capazes de esfriar meus ânimos naquela noite. Todos estavam ali, não fora uma ação velada. Expus-me. Seus olhos circulavam buscando uns aos outros, todos dissimulados. Ninguém se apercebia da fatuidade de tudo isso. O jogo chegava ao final e aqueles, cujas apostas eram que eu perderia a fleuma, eram vitoriosos.

Não poderia mais ficar no meio deles, dos eleitos, não conseguiria. Não poderia ser expulso, afinal: a caridade sempre perdoa. Sempre a boa e velha caridade, a caridade visceralmente impregnada de hipocrisia. Não havia,no entanto, nada em nenhum cânon, era nosso ethos que assim impunha. Não posso, todavia, dizer que não tomei minhas próprias decisões.

Alguns tentaram apaziguar as coisas, mas relutei, afinal tudo fazia parte de um processo que vinha já havia algum tempo acontecendo em mim. O medo do bicho-mundo, tão propagado, tornara-se mudo aos meus ouvidos. Os questionamentos que atualmente me acossavam e a fuga, me instigaram a enfrentar o bicho-mundo e a perscrutar seu território.

Tomei a primeira canoa que dispunha e me lancei a desbravar o território inimigo. Estava tão excitado que nem me dei conta de prover a embarcação. Armei-me tão-somente de uma faca que trazia à cintura e parti. Durante toda a noite não esmoreci, remava embevecido pela cólera à toda velocidade. Meus olhos não cochilaram um só minuto. Minha mente devaneava vagando por uns sem-números de pensamentos. Só consegui pregar os olhos quando percebi que o sol a pino queimava minha testa crispada. Aportei a canoa próximo a um remanso e repousei durante horas à sombra de uma Samaumeira.

Acordei,de chofre, apavorado com um estampido que ecoava selva adentro. Era um som diferente de tudo quanto já ouvira até então. Lembrei-me imediatamente do bicho-mundo. Meu corpo tornou-se completamente lívido. Meu sangue congelou-se : entrei em pânico. Corri rumo à primeira fresta que surgia da floresta sem sequer perceber que os cipós e tiriricas me lanhavam todo o corpo. Parei quando notei que não estava em perigo, nenhum monstro ou criatura me perseguia. Estava só em meio à floresta.

Não voltei a escutar nenhum ruído semelhante àquele, então, resolvi explorar o local. Com apenas algumas horas, entendi que aquelas paragens já haviam conhecido a presença humana. Havia destroços de uma fogueira e resto de pele de animais em derredor. Identifiquei claramente o rabo de um guariba próximo à fogueira, dando-me a entender que fora comido por algumas pessoas que estiveram no local. Chamaram-me a atenção ainda,pequenos objetos de metal que cabiam tranqüilamente na palma da mão, provavelmente inúteis a quem passara por ali, pois visivelmente haviam sido descartados.

Ocorreu-me que talvez o bicho-mundo os tivessem devorado, mas essa idéia logo me pareceu de todo irreal. Como ali fosse um ótimo posto e de nenhuma forma parecia estar em perigo, resolvi amarrar a canoa e acampar por ali.

O lugar me parecia cômodo, sem contar que a toda hora me reportava aos questionamentos acerca do bicho-mundo e seus filhos. Não demorei a edificar uma pequena cabana que me abrigasse durante a noite. Felizmente consegui abastecê-la com pequenas frutas para que a fome não me pegasse desapercebido.

Aos poucos fui me habituando ao local, perdia o medo, agora estava determinado a atravessar o rio e finalmente desvendar o mistério do bicho-mundo e bem como do ruído ululante que escutara no dia anterior. Quando o sol deu-me trégua, supri a canoa com água e toda espécie de víveres que pude encontrar e lancei-me a remar.

Para ser sincero, durante as horas que remava parecia haver esquecido tudo que me ocorrera; parecia que ainda estava na Ilha fazendo minhas tarefas habituais. Não havia bicho-mundo; não havia discussão. Lembrava-me a todo instante dos momentos felizes que passei na Ilha, antes de todos esses acontecimentos, quando ainda era um eleito; quando a filosofia fazia parte de mim. Podia ultrapassar quaisquer problemas, o amor sobrenatural me bastava, me completava. “Sou forte e nada pode me deter” pensava à época. Os irmãos confiavam em mim como neles próprios, eu era como um deles. Sentia-me responsável pelos menores, não iniciados, ensinava-os sobre a filosofia, admoestava-os, advertia-os acerca do bicho-mundo e de seus embustes.

Agora era a mim que a fera chamava, armava-me arapucas o embusteiro. Ocorreu-me que seria possível que o estrondo que havia escutado não passasse de mais uma de suas armações para me impelir a navegar em sua direção. Apavorei-me novamente. Foi exatamente nesta hora que tive a visão: algumas figuras surgiam ao horizonte. Jamais vira qualquer coisa igual. Eram totalmente estranhas a mim, logo pensei que deveria ser onde eles moravam.

Súbito um ruído me chamou a atenção. Era diferente do primeiro, era contínuo e com intervalos intermitentes. Voltei-me para o lado quando dei com uma embarcação que parecia vir em minha direção. Logo percebi que era esta coisa que produzia o tal zumbido. Mandei a curiosidade às favas e dei meia-volta bruscamente, remando a mais não poder.

Tornei a encontrar meu acampamento e por lá fiquei ao longo de mais dois dias. Não parei de pensar na cena em nenhum instante. Não sei se tomado pelo tédio ou pela coragem, decidi ir até àquela aldeia que havia visto,travar contato com aquela comunidade tão diferente da minha,alargar meus conhecimentos.

Por isso estava agora aqui. Naveguei horas até este trecho, o mais próximo que já chegara do desconhecido. Estava no último ponto que me permitiria ou não retroceder. Daqui por diante, se continuar a remar, é inevitável que me encontre com alguém. Desta vez estou mais ansioso que apavorado. Sei que : ou percebo que todas as histórias que escutei até então não passavam de invencionices dos primeiros irmãos, que por algum motivo resolveram se manter afastados daquelas outras pessoas ; ou , acabo de ter sido enganado pelo bicho mundo e estou na iminência de ser feito escravo como os outros.

Uma coisa é certa: já não me basta o dia-a-dia da Ilha, não quero mais me ilhar. Posso estar errado, porém quero errar meus próprios erros, nada é pior que se acomodar, infeliz, sendo alvo dos comentários alheios. Sei que aprendi muito, mas não posso estacar, quero conhecer tudo, como tudo realmente o é e não como gostaríamos que fosse, porque senão, viveria em uma mentira como na Ilha,uma fantasia cujos os eleitos viviam felizes, no entanto, idiotizados.

Estou pronto bicho- mundo, desafio-te !Tenho plena consciência de que posso viver feliz durante anos junto a teus filhos para perceber depois que tudo não passou de mais um de teus embustes; que realmente aquilo que experimentava não era felicidade, mas algo aproximado a ela e que, esta, só haveria de conhecer ali, na Ilha, e pela vivência da filosofia. Valerá a pena? Estou certo que sim. Grito: “ Venha bicho-mundo, quero te conhecer”.





FIM